O professor Cavalcante foi um pioneiro nos Estudos Clássicos no Brasil. Foi nomeado em 1995 o Presidente de Honra do CPA (Centro do Pensamento Antigo); foi professor titular da Unicamp e da USP. Nasceu em 1925, na cidade de Cariús, localizada no Ceará, e faleceu no último dia 24 de Maio de 2020.
Durante a sua longa trajetória acadêmica, jamais se esqueceu das suas origens nordestinas. Nesse sentido, recordo-me daquilo que me confessou certa vez. Ele me disse, mais ou menos, as seguintes palavras: "Quando aparecem candidatos a uma vaga de pós-graduação e eu tenho que fazer uma escolha, sempre levo em conta a origem e oportunidades anteriores de cada aluno". E me explicou ele: caso se apresentam dois alunos de qualidades mais ou menos equivalentes, e se um for do Nordeste e outro de São Paulo ou Rio de Janeiro, eu" – disse ele – "dou preferência àquele que veio lá de onde eu vim". Ainda explicitou que isso não expressava nenhum chauvinismo regional, mas sim a reflexão profunda a respeito das dificuldades que sofriam aqueles que vinham das regiões mais pobres do Brasil. Lugares onde não existiam bibliotecas, professores devidamente capacitados – fora as dificuldades gerais de existência que infelizmente ainda imperam em tantas regiões do nosso país.
Esse lado de profundo e rigoroso humanismo social sempre esteve presente em seus ensinamentos. Cavalcante tinha um grande conhecimento do Grego Clássico, que adquiriu, em grande parte, solitariamente (ainda que tenha tido a oportunidade de ser orientado pelo professor francês Robert Henri Aubreton, que lecionava na USP). Cavalcante percorreu durante anos os textos de Platão, dos pré-socráticos, de Aristóteles e dos poetas gregos, sempre arrastado por essa paixão pelo humanismo helênico.
Mas também nunca se esquecendo do Brasil. Contou-me meu colega e amigo, o Professor Jaa Torrano, que conviveu com ele no Departamento de Letras Clássicas da USP, que Cavalcante tinha um conhecimento tal do Grego Clássico que verteu trechos da obra de Machado de Assis para a língua de Platão. Espero que esses manuscritos ainda existam e possam, um dia, ser publicados. Caminhando em sentido contrário à tendência atual dos estudiosos de Estudos Clássicos no Brasil, que vertem os textos que escrevem para o inglês, e gostam de traduzir para o português tudo aquilo que se produz na Europa ou nos EUA, Cavalcante vertia os textos clássicos brasileiros para o Grego do século IV a.C.! Caminhava assim contra toda essa tendência que transparece em grande parte da produção em Estudos Clássicos hoje, no Brasil.
Uma das influências contemporâneas que esteve sempre presente nas suas aulas foi a obra de Jean-Pierre Vernant. Inclusive, já com certa idade, fez um estágio de cerca de dois anos junto ao Centre Louis Gernet, liderado por Vernant e Vidal-Naquet. Ambos autores não eram propriamente comentadores dos Gregos; tinham sim uma preocupação histórica e social, algo que sempre permeou também os ensinamentos do Professor Cavalcante.
Outro aspecto bastante importante dos seus ensinamentos, que me marcou muito, é aquele de não dar muita importância aos comentadores contemporâneos de Platão ou dos outros autores gregos. Para ele, era mais importante ler os Gregos a partir dos filósofos, particularmente Nietzsche, Hegel e Heidegger. Gostava muito de autores como Burckhardt, grande historiador do século XIX, que escreveu uma longa obra sobre a cultura grega clássica. Tenho certeza de que essa orientação marcou a minha própria leitura de Platão, absolutamente heterodoxa. Àqueles filósofos que Cavalcante mais frequentava, eu, particularmente acrescentei Marx, Deleuze e outros para compreender Platão. Da mesma forma, acredito, essa maneira de ler os gregos que marcava o Cavalcante determinou a originalidade das obras de Jaa Torrano, essa tendência a não crer muito nos comentadores atuais, e se deter mais nos próprios textos originais, ou ainda, como fazia Cavalcante, valorizar as reflexões filosóficas sobre os Gregos.
Cavalcante orientou toda uma geração de helenistas brasileiros, e não saberia enumerar todos, lembro de passagem que os seus discípulos fizeram traduções e teses... Tantos e tantas! Além do Torrano e de eu próprio, recordo apenas alguns nomes que agora me vem à memória: Lígia Watanabe, Francisco Benjamin de Souza Netto, Rachel Gazolla, Mary Laffer, Mário Miranda, Lucas Angioni, Maria Carolina dos Santos, Filomena Hirata e muitos outros e outros que eu não posso, realmente, enumerar...
De acordo com a sua humildade e modéstia, publicou muito pouco de tudo aquilo que produziu. Mas o volume que organizou sobre os filósofos pré-socráticos, publicado na coleção Os Pensadores, marcou época. Ele próprio traduziu os fragmentos de alguns filósofos, mas teve a ajuda de diversos dos seus discípulos que traduziram alguns dos fragmentos. O interessante nessa obra organizada por ele foi, justamente, acrescentar as traduções de textos de Nietzsche, Hegel, Heidegger e outros que não eram propriamente comentadores, mas sim possuíam uma abordagem filosófica dos textos. Da mesma forma, foi importante o volume da coleção Os Pensadores que Cavalcante organizou a respeito de Platão. Destaca-se nesse volume a sua própria tradução de O banquete. Publicou além disso alguns artigos, e, depois de aposentado, publicou pela Editora 34 uma bela edição e tradução do diálogo Fedro, de Platão, com notas do filósofo José Trindade. Soube que Jaa Torrano teria contribuído na revisão do texto grego final. E parece que realizou ainda uma tradução inteira da Ilíada de Homero, porém jamais esta sua tradução veio a público.
Queria ainda deixar aqui uma lembrança de saudades e solidariedade para todos os seus outros alunos e orientandos aqui não mencionados. E, particularmente, lembro dos seus familiares, com os quais tive contato sempre muito afetuoso.
Alcides Hector Rodriguez Benoit
Professor Colaborador do Departamento de Filosofia da Unicamp